terça-feira, 7 de maio de 2019

GUAJURÍS


CAP. - VI - O SACRIFÍCIO

Quem não pode com o inimigo, junta-se a ele. Esse é um velho conceito de sobrevivência em guerras. Ou você morre como herói ou se entrega como covarde e aguarda o veredicto do conselho de guerra, no caso o conselho dos aniões. Esses veredictos nunca são favoráveis aos vencidos, mas no momento você permanece vivo e a  possibilidade de uma evasão é sempre uma esperança. No meu caso, já considerava uma vantagem pelo fato de ser o único vivo. Além do mais, a promessa do cacique de que ninguém me faria mal na aldeia era também um fato positivo. Me lembro que minha mãe sempre dizia que que eu não temesse os mortos pois o perigo está é entre os vivos. Bom,  se minha mãe estivesse aqui, viva e rodeada de almas penadas, talvez pensasse diferente. Mas eu estava de fato, muito bem tratado entre os mortos. O cacique era mesmo um bom anfitrião. Os criados, já não mais disfarçavam na hora de aparecer ou desaparecer. Um dia quase esbarrei na índia que saia do meu quarto com uma braçada de lençóis. Notei que ela aparecia sempre vestida com a mesma roupa de sempre. Parece que se trocara para uma ocasião especial em tempos remotos e nunca mais precisara trocar de roupá. Eu circulava livremente pela aldeia e me sentia muito bem junto aquela gente hospitaleira. Muitas vezes a aldeia estava deserta, por ser a hora do "descanso" e outras vezes eu  quase desbarrava em mulheres carregando coisas, quando elas surgiam de repente, vindo do além. Sempre que passava diante do "altar"sentia que meus pelos se levantavam. Tinha medo, é  claro, mas aquela rocha negra parecia tão inofensiva  que eu começava a acreditar que tudo aquilo era somente folclore. Nada de mal poderia vir daquela rocha. Aquilo era só uma pedra. 
O cacique se fechou novamente. Não consegui extrair mais nada da sua história. Não pude saber como ele se transformara em cacique da tribo, sendo branco, nem como ele teria morrido, se morrido, uma vez que ele se afirmava estar bem vivo, apesar de ter 300 anos. Um dia vi o aviãozinho aterrissar no aeroporto. Corri para lá curioso. Chegando perto, vi a porta do avião abrir mas não vi ninguém desembarcar. Piloto fantasma, que surpresa. Fiquei observando, daí a pouco o piloto se materializou do nada, descarregando caixas. Ofereci ajuda e ele aceitou de bom grado como se fossemos velhos amigos. Outros vieram ajudar e levamos tudo para a bodega. Um abastecimento normal como  em qualquer sociedade. De que eu poderia ter medo? Na hora do jantar, resolvi abordar mais uma vez na esperança de adquirir mais conhecimento dos mortos.
- Senhor Januário, se todos estão mortos, como podem comprar coisas em Manaus?
- O senhor insiste em dizer que estamos mortos, meus servidores vão a Manaus, visitam armazéns, compram coisas, como podem estar mortos?
- Então porque eu não posso embarcar naquele avião e ir embora?
- Pode, o senhor quer ir? Lembra que lhe falei que se sair da aldeia o senhor não existe? Então embarque, vá, o senhor é quem sabe. "Eu é quem sei", pois sim, Eu estava na mão daquele feiticeiro e ele diz que eu é quem sei..
- Vou ficar.
E fiquei, me entreguei  aos caprichos do cacique e ofereci em trabalhar na horta, para matar o tempo. Sendo o único totalmente vivo, poderia trabalhar em tempo integral e passar mais tempo fora de casa, longe dos fantasmas.  Já estava acostumado aos desaparecimentos dos índios e não me importava se eles estivessem vivos ou não. A noite, confabulava com o cacique mas não extraía mais segredo nenhum. Notei que ele andava um pouco triste, meio chateado, mas não dizia porque. Um dia ele suspirou e disse de repente:
- Estou cansado de viver.
- Como?
- Nada, vamos desligar o gerador e dormir
.Estava trabalhando na horta e ouvi grande barulho na aldeia. Uma gritaria danada, um barulho infernal. Vi rolos de fumaça negra e pensei. 
- Meu Deus, aldeia está pegando fogo.
Corri para lá e quando entrei no centro da aldeia uma multidão estava reunida em torno da pedra. 
Era tanta gente que eu não conseguia chegar perto. Subi num oca e me me agarrei como pude para observar o que estava acontecendo. Havia dez fogueiras em torno da pedra e em uma especie de palanque estavam três velhos índios seminus com grandes cocares na cabeça e estandartes nas mãos. Eles batiam os estandartes e curvados como velhos que eram, gritavam uma palavra indecifrável.
 O povo dançava uma dança frenética, acompanhado o batuque dos estandartes e gritavam:
- "GUAJURÍS, GUAJURÍS, GUAJURIS, 
As fogueiras crepitavam e  por entre as línguas das labaredas eu verifiquei que havia uma figura humana sobre a plataforma. Era próximo as 18 horas e através da fumaça negra, agora meio que violeta, por causa do por do sol, eu pude ver o  rosto do infeliz sobre a pedra. Ele se virou para mim e sorriu. Era o cacique. Ele não se debatia, nem tão pouco estava amarrado. Parecia feliz por estar  ali sendo cosido vivo. As chamas não o atingiam diretamente, mas o calor provocado por aquelas 10 fogueiras enormes em torno da pedra, se não o queimava diretamente, deveria cozinhá-lo  lentamente.
Pensei, Meu Deus, esse homem é realmente vivo, senão não teria se oferecido para o sacrifício. Queria fazer alguma coisa  mas não tinha como passar por aquela multidão e mesmo que conseguisse não teria como me aproximar do altar, passando por aquele fogaréu todo.
E os índios gritavam GUAJURÍS, GUAJURÍS, GUAJURÍS, executando evoluções frenéticas em êxtase. 
De repente eles começaram a girar em torno da pedra.... não, era a pedra que estava girando lentamente e acelerando. GUAJURIS, GUAJURIS, GUAJURÍS, O altar acelerou ainda mais e começou a se elevar, saindo do interior da terra. Era grande, como uma cunha sendo extraída e subindo lentamente como um foguete sendo lançado em CABO CANAVERAL. Quando a grande cunha finalmente se libertou da terra  como uma rolha, já tinha uns 30 metros de comprimento e finalmente subiu para o espaço. Era um imenso cilindro antes preto, agora vermelho, como se as  fogueiras o tivesse aquecido ao ponto de combustão. Houve um baque, uma especie de estouro mudo e a choupana em que eu estava escarafunchado se desmoronou. Eu caí em cima de uma moitas macias. Não havia mais choupana, não havia mais nada, não havia mais aldeia. Só uma grande clareira natural no meio da floresta. Havia sim um lindo por do sol atrás das montanhas. Me levantei, me apalpando, para ver se estava vivo. Estava. Só que vestia meus antigos trajes andrajos, estava sujo, cabeludo e faminto. Andei meio que aos tropeções e desbarrei com meu velho bornal de couro, com as  cordas e o cutelo dentro.

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